top of page
Buscar
  • Foto do escritorVOA INSTITUTO

PERDA GESTACIONAL: Um caminho ainda pouco conhecido

Atualizado: 29 de ago. de 2021

Hoje, no consultório, me deparei com a presença que me tocou por sua expressão de dor e pelo olhar perdido... O que teria acontecido por trás daquela postura cabisbaixa? Tão recentemente ela estava tão feliz, tão realizada, sentindo-se “completa”.

Fisicamente, ela era a mesma que há poucos meses tinha um sorriso largo e um brilho nos olhos, cheia de vida e de projetos. Sonhava com o dia de ter, finalmente, nos braços, o tão sonhado filho que ela e seu marido tanto planejaram. Nos relatos, já tinha ouvido o quanto suas famílias e amigos cobravam ao casal por um herdeiro. No princípio, os dois queriam aproveitar a vida, mas depois de quatro anos de casados, começaram a sonhar com um filho; se divertiam sonhando se seria menino ou menina, em nomes que colocariam nele (a) e as fantasias tomavam muito tempo. Quanta expectativa, quanta espera, quanto investimento emocional ia se constituindo. Mudaram para uma casa com jardim, compraram carro maior e ela suspendeu o anticoncepcional. Mas nada! Até que certo dia, ela entrou no consultório e disse: estou grávida! A ficha não caiu...e soltou uma grande gargalhada. Estava muito feliz. Dizia que não parava de receber mensagens da família e dos amigos. Muitas comemorações!

Entendi como muito natural toda aquela alegria, todo aquele empoderamento, afinal ela carregada dentro de si um projeto de filho sonhado a dois. Ela finalmente, poderia mostrar a sociedade o filho tão cobrado. Afinal, a maternidade permanece validada socialmente como uma forma de afirmação do feminino e está presente no mundo presumido de muitas mulheres. Afirma-se fertilidade, potência, saúde. Lembrei-me dela feliz, confiante, sentindo-se mais bonita e com uma sensação de força, de que podia mais. Até os enjoos faziam parte daquele roteiro da gravidez. Faz parte do caminho para ser mãe. Tudo parecia valer a pena para ter “meu bebê, meu filho” e poder apresentá-lo a sociedade.

Os dias passavam e as transformações físicas e psicológicas iam ocorrendo dentro do esperado na gravidez. Enjoos, muitas interrogações... “será menino ou menina? Meu marido quer menino, mas para mim, só quero que venha com saúde. Mas estou curiosa de com quem ele vai parecer. Gostaria que parecesse mais comigo, não gosto do nariz do meu marido”.

E as dúvidas aumentavam: “como será o parto? Quem irá ficar comigo nos primeiros dias depois do nascimento do bebê? Vou engordar ou não? Conseguirei amamentar? E o quarto, quando começar a montar tudo e providenciar o enxoval?” Ela era só encantamento. Não havia reclamações depois de tanta espera.

Quando a vi na recepção, sua imagem contrastava com aquela alegria de sempre. Quando ela entrou parecia que estava sustentando o mundo nas costas. Disse: “perdi meu bebê. Já chorei tanto que não consigo nem mais chorar. Estou sentindo um vazio”. Seu olhar, não fitava, estava perdido. “Não estou acreditando. Não fiz nada, não sei porque perdi meu bebê”.

Em meio ao choque pela perda inesperada, ela buscava uma lógica, um sentido para aquilo ter acontecido. Sentia-se culpada, parecia ter falhado em não conseguir “sustentar” o projeto do casal. Os sentimentos estavam confusos: tristeza, raiva, culpa, frustração, insegurança, sensação de falta de controle...

Outras sessões vieram e ela trazia outras dores. “Não sei o que acontece que as pessoas só conseguem me dizer que vou ter outro. Parece que ninguém aguenta me ver triste, parece que nada aconteceu. Sinto-me muito mal”. Realmente sua perda e sua dor não estavam sendo validadas. Ninguém reconhecia que ela era uma mãe, que tinha perdido seu bebê com poucos meses de gestação. Era invisível seu investimento emocional, a perda dos seus sonhos. Ela dizia: “minha mãe ainda disse que parasse com “aquilo” (que era minha tristeza) e continuou dizendo que viriam outros. Como assim? Não quero falar de outros. Quero aquele que estava na minha barriga”.

A sua mãe já tinha desligado o telefone. Não tinha muita paciência para com todo aquele sofrimento. E ela dizia: “sinto um vazio muito grande. Qual o sentido de tudo isso? Se for uma lição para eu aprender algo, quero dizer que a vida não tem sentido nenhum. E não quero ter outros filhos. Não sei se vou dar conta. Perdi a confiança em mim, entende? Esperava engravidar, ficar “barriguda” em nove meses e finalmente, ter meu bebê nos braços. Ir para casa e vê-lo crescer junto com meu marido. Agora, tudo isso foi por água abaixo”.

Eu a entendo em que muitas coisas foram perdidas e ainda não recuperadas: a confiança em si própria, a confiança no mundo – afinal, a sensação de controle quando perdeu repentinamente seu bebê, abalou todo seu senso de segurança conhecido até então.

Depois de dias, ela consegue dizer: “perdi meu bebê, perdi meus sonhos, perdi a confiança em mim, perdi certezas, perdi força, perdi meu sono, perdi minha vontade de comer, perdi meu humor, perdi minha capacidade de brigar, perdi minha capacidade de estar com pessoas, só tenho vontade de ir para casa e ficar só, faço tudo no automático, perdi minha energia. Não me estou me reconhecendo”.


E eu pergunto para quem me lê: do que falamos até agora?

Estamos falando de perdas concretas e simbólicas. Ela perdeu seu tão sonhado bebê, fruto de tanta espera e investimento emocional. Perdeu aquele projeto que tinha com o marido. Perdeu sua certeza de que teria seu bebê nos braços. Perdeu a confiança em si, perdeu sua oportunidade de ser validada como mãe pela sociedade, perdeu a alegria, perdeu seu gosto pela vida. Encheu-se de tristeza, de vazio, de raiva, de culpa, de frustração, de revolta, de choro fácil. O luto acontece sempre que lidamos com perdas (concretas ou simbólicas) e nos confrontamos com sentimentos que nos paralisam e nos impõe a condição de parar e elaborar esse momento. A dor é maior ainda porque não encontra acolhimento pelas pessoas próximas, que percebem a situação apenas como a perda de um ser que ainda não tinha identidade, que não era conhecido socialmente. Porém, para esta mãe, ele já tinha a identidade necessária de ser o seu bebê tão esperado. Precisamos aceitar que para muitas mulheres elas já são mães no seu mundo interno quando entram em contato com o desejo da maternidade. O luto é proporcional ao investimento emocional que diz respeito ao desejo de vir a ser e que se materializa com a gravidez. Precisamos acolher, cuidar, validar todo o percurso da experiência relatada e assim ajudá-la na elaboração desse luto por perda gestacional, que por não ser reconhecido, se torna mais dolorosa ainda.


SYLVIA ACÁRIO

CRP 06/147735





43 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page